terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A palavra que faltava

Era preciso escrever. Os passos tortos, as falas gagas, todas as peças desencontradas, e mesmo assim ela precisava escrever. Tinha as mãos trêmulas, a voz fina, o choro preso, e mesmo assim queria escrever. Escrever lhe dava força, lhe preenchia a alma, lhe curava as feridas, lhe trazia respostas. Escrever lhe tirava da terra e assim ela podia mergulhar na imensidão azul. Ela escrevia freneticamente, as mãos em sangue, em carne viva, e à medida que as palavras iam se agrupando seu corpo ia ganhando força, ganhando vida, ganhando. Ela pôs palavra por palavra encaixotadas em um só texto. Sua vida agora era melhor, havia mais motivos, mais lógica e mais futuro. Todas as palavras a curaram do passado, das angústias, das lágrimas. De tanto escrever sobre as dores, o paraíso apareceu. Havia anjos, havia sinos, havia conchas, mar e céu. As suas cores, formas e cheiros, era tudo tão belo, tão singelo, e tão forte. O paraíso parecia tão seguro de si, das suas certezas e das incertezas. Nada era tão perfeito, nada lhe dizia mais sobre si e sobre o destino. Não, nem era preciso acreditar no destino, era tudo apenas uma questão de viver. Não era preciso acreditar em nada, era só deitar naquela cama e esperar que os corpos suados se entendessem, e eles sempre se entendiam. Tudo que era sujo ficara para trás, fora expurgado dela, e agora só restava vontade, desejo de ser melhor, e viver melhor, e era possível, pois estava fazendo exatamente assim. Agora as mãos estavam curadas do sangue, e já não estavam em carne viva. Escrever era prazer, não desabafo. As palavras eram dominadas e não lágrimas. Todos os seus movimentos a levavam para uma nova forma de sentir, de amar, de querer. Todos os seus planos só confirmavam isso. Não havia mais reticências, agora era tudo continuação. Agora tudo era dito, em verdade, nos olhos cheios de cores. Tudo poderia ser falado, rido ou sofrido junto. De todas as palavras era essa que faltava.