segunda-feira, 10 de maio de 2010

A menina e as flores

A menina entrou no mercado e comprar é o que menos significa agora. Passeando entre as fileiras enormes, desviando daquelas pessoas que pareciam famintas de tempo e formavam filas gigantescas, ela sentia cheiros, muitos cheiros, que se confundiam em seu olfato desorganizado. A menina tinha pouca idade, e não lembrava exatamente o que fora comprar no mercado, mas estar ali já parecia ter carregados significados, embora ela se sentisse carregada mesmo, como quem pega o peso do outro e põe sobre si e entende seu corpo agora mais pesado. Estar no mercado já bastava. Talvez tenha acreditado nisso tudo para não ter que aceitar suas falhas de memória. Falhas diárias, que a faziam esquecer as chaves de casa, datas comemorativas, e de todo o resto que parecia tão fundamental para alguns. Ela nunca esquecia de acordar. Bom, a menina continuou andando e procurando não sabia exatamente o quê, como fazia sempre. De repente aconteceu aquilo para que este conto nasceu. A menina que tinha olfato desorganizado era dona de uma audição impecável, e ainda que não quisesse ouvir, seria impossível, o homem ao auto-falante anunciava: Lírios e Begônias 14.99, apenas 14,99! Uma promoção imperdível, leve a sua para casa. Ela ouviu aquilo e ficou intrigada. Depois viu as pessoas correndo em direção à sessão de flores. Cada uma pegava um quilo, dois, colocavam debaixo do braço e voltavam às filas. Mas, o mais impressionante era ver àquelas pessoas arrancando as flores das mãos alheias por saber que aquilo já lhe pertencia. Era um gesto maior, mais interessante, os quilos de flores como carne saciava a fome daqueles que estavam ali como ela, sem saber exatamente qual objetivo. As filas iam ficando cada vez maiores, as pessoas iam se agrupando, cada uma com seu quilo de flor na mão. O mais curioso para ela era entender as razões que levavam àqueles indivíduos a tratar flores como carnes. A essa altura as flores já estavam molhadas de sangue. As gotas vermelhas pingando dos arranjos e se agrupando em poças e somente a menina via. As pessoas andando e pisando nas poças, as gotas espirrando para todos os lados, e as barras das calças sujas, mas ninguém via nada. As flores se perdendo em gotas, se perdendo em vida e nas filas. Não eram mais flores, eram carnes. E, todas as pessoas compravam e compravam e compravam e eu poderia ficar me repetindo até o ponto final. Mas ainda não é o final. A menina ficou muda. Assustada e muda. Mas, ela não devia ser muda. Ela nasceu em choro e em grito, e então deveria gritar, ela tinha esse direito, não tinha? Então gritou. Estava tudo errado, e era preciso dizer. Correu na seção de tintas, pegou um punhado delas e começou a pintar uma a uma, todas as flores. Limpou o chão, recolheu os lírios e as begônias, e pôs, todas, de volta nos seus lugares, que obviamente não era o mercado. Algumas pessoas a ajudavam, enquanto outras ficaram paradas, olhando, curiosas. Ao fim de sua incansável tarefa, a menina decidiu ir para casa. No caminho, enquanto caminhava tranquilamente, ouvia ao longe berros que diziam: Livros por 9,99, não percam, leve o seu agora!

2 comentários:

Thalita Castello Branco Fontenele disse...

Que aflição.
Afeto. Afetada.



E saudades.

myl disse...

Posta mais vai.....
:)
Linda!